segunda-feira, 14 de novembro de 2011
Encontro
Foi a primeira pessoa que viu quando entrou. Tão bonito que ela baixou
os olhos, sem querer querendo que ele também a tivesse visto. Deram-lhe um
copo de plástico com vodca, gelo e uma casquinha de limão. Ela triturou a
casquinha entre os dentes, mexendo o gelo com a ponta do indicador, sem
beber. Com a movimentação dos outros, levantando o tempo todo para dançar
rocks barulhentos ou afundar nos quartos onde rolavam carreiras e baseados,
devagarinho conquistou a cadeira de junco junto à janela. A noite clara lá fora
estendida sobre a Henrique Schaumann, a avenida poncho & conga, riu
sozinha. Ria sozinha quase o tempo todo, uma moça magra querendo controlar
a própria loucura, discretamente infeliz. Molhou os lábios na vodca tomando
coragem de olhar para ele, um moço queimado de sol e calças brancas com a
barra descosturada. Baixou outra vez os olhos, embora morena também, e
suspirou soltando os ombros, coluna amoldando-se tensa ao junco da cadeira.
Só porque era sábado e não ficaria, desta vez não, parada entre o som, a
televisão e o livro, atenta ao telefone silencioso. Sorriu olhando em volta, muito
bem, parabéns, aqui estamos.
Não que estivesse triste, só não sentia mais nada.
Levemente, para não chamar a atenção de ninguém, girou o busto sobre
a cintura, apoiando o cotovelo direito no peitoril da janela. Debruçou o rosto na
palma da mão, os cabelos lisos caíram sobre o rosto. Para afastá-los, ela
levantou a cabeça, e então viu o céu. Um céu tão claro que não era o céu
normal de Sampa, com uma lua quase cheia e Júpiter e Saturno muito
próximos. Vista assim parecia não uma moça vivendo, mas pintada em
aquarela, estatizada feito estivesse muito calma, e até estava, só não sentia
mais nada, fazia tempo. Quem sabe porque não evidenciava nenhum risco
parada assim, meio remota, o moço das calças brancas veio se aproximando
sem que ela percebesse. Parado ao lado dela, vistos de dentro, os dois
pintados em aquarela - mas vistos de fora, das janelas dos carros procurando
bares na avenida, sombras chinesas recortadas contra a luz vermelha. E de
repente o rock barulhento parou e a voz de John Lennon cantou every day,
every way is getting better and better. Na cabeça dela soaram cinco tiros. Os
olhos subitamente endurecidos da moça voltaram-se para dentro, esbarrando
nos olhos subitamente endurecidos do moço. As memórias que cada um
guardava, e eram tantas, transpareceram tão nitidamente nos olhos que ela
imediatamente entendeu quando ele a tocou no ombro.
- Você gosta de estrelas?
- Gosto. Você também?
- Também. Você está olhando a lua?
- Quase cheia. Em Virgem.
- Amanhã faz conjunção com Júpiter.
- Com Saturno também.
- Isso é bom?
- Eu não sei. Deve ser.
- É sim. Bom encontrar você.
- Também acho.
(Silêncio)
- Você gosta de Júpiter?
- Gosto. Na verdade “desejaria viver em Júpiter onde as almas são
puras e a transa é outra”.
- Que é isso?
- Um poema de um menino que vai morrer.
- Como é que você sabe?
- Em fevereiro, ele vai se matar em fevereiro.
- Hein?
(Silêncio)
- Você tem um cigarro?
- Estou tentando parar de fumar.
- Eu também. Mas queria uma coisa nas mãos agora.
- Você tem uma coisa nas mãos agora.
- Eu?
- Eu.
(Silêncio)
Caio Fernando Abreu
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